
A nossa polícia é eugênica – combate o dito “crime organizado” como se estivesse “limpando” a sociedade de todo o mal e o nosso traficante de drogas preto da periferia tem motivos de sobra para se revoltar com o Estado. Anos de exclusão em um país conduzido por uma elite colonial, provinciana, autoritária, sem oportunidades para os recém-libertos negros do pelourinho, da senzala, sem alfabetização, sem documentos: tudo isso fomentou o sistema autoritário, reacionário e conservador em que ainda está mergulhado o Brasil.
Vivemos em um Estado em que a imensa maioria dos governantes e a população diretamente envolvida dizem acreditar que tudo só mudará com investimento efetivo em educação, mas os discursos de repressão mostram que esses mesmos defensores da Educação não passam de executores do que sobrou de um Brasil oligárquico e ditatorial: mais investimento em Segurança Pública, mas não no trabalhador em Segurança Pública, no ofício de repressão a que se presta nossa polícia. A população acredita na polícia e a polícia acredita nos policiais. Os policiais, por sua vez, acreditam na repressão como obra do divino. Ninguém acredita na Educação. Portanto, todos acreditam na repressão, mas adoram ecoar suas preferências pela Educação. É um discurso progressista em cima de práticas conservadoras, herdadas de nossa elite mais atrasada, aquela que combateu o déficit da produção industrial com uma política de substituição da importação, aquela que promoveu a abolição da escravatura legando aos negros outras senzalas igualmente cruéis na sociedade, aquela que derrubou governos mais trabalhistas e continua militando nessa direção. É a elite dos privilégios. É a elite Anti-Lula, AntiLulopetismo, Anti-Bolsa Família, Anti-Crédito Consignado, Anti-Universidade Pública para todos, Anti-Cotas, Anti-PROUNI. É uma elite que, ao invés de prevenir, quer sempre remediar com violência e mais violência. Não reflete essa elite que a violência é uma resposta direta para a má distribuição de renda.
Com a anuência da sociedade, representando o Estado e, ao mesmo tempo, sendo violentado e violentando em nome dele, os nossos policiais entram na periferia para enfrentar a revolta histórica de pessoas secularmente à margem de nossa sociedade. São esses traficantes os filhos das senzalas, filhos daqueles que passaram o século XX sem saneamento básico, trabalhando a troco de comida, explorados nas roças de cacau e nos latifúndios em geral. Eles são guerrilheiros confusos, sem consciência de classe, reacionários e selvagens. Se em nossa sociedade oligárquica e colonial (somos ainda coloniais!) as pessoas que se dizem letradas e/ou escolarizadas não acreditam em Educação, não é de admirar que esses senhores vendedores de drogas acreditem. Eles acreditam na própria força de trabalho. Estão a serviço de um capitalismo ainda mais selvagem porque o Estado não enxerga a legalização e regulamentação como medidas de controle social. Não são eles que estão no topo do mercado de drogas e querem estar a qualquer preço. Como no capitalismo legal, poucos chegarão lá. Vivemos uma guerra civil não ideológica, marcada pelo resultado do triunfo de nossa direita rentista, do nosso coronelismo, da ideia etnocêntrica com a qual se enxerga o outro, do ódio que se tem da prostituta, do mendigo e do trabalhador não assalariado. É o que defende a filósofa Marilena Chauí ao destacar que vivemos as mazelas da herança maldita de um Estado autoritário, de nossa ditadura militar.
Enquanto o controle social e intervenção na produção e distribuição das drogas no Brasil não for efetivado, policial e traficantes serão vítimas do capitalismo, da ineficiência de nossas políticas de controle. Enquanto o sistema penitenciário for medieval, policiais e traficantes vão morrer. O ódio ao traficante é também ódio de classe. O ódio ao policial é um ódio ao Estado. O policial merece morrer porque o Estado merece acabar. O traficante, por sua vez, é um fiel defensor do capitalismo do modo que está, pois nada consegue ver além própria mais-valia a que se submete. O traficante é tão neoliberal quanto o FHC. Enquanto isso, o Estado pós-industrial se submete a assistir às cenas dos meninos do tráfico, crianças de 5 anos numa vida aviltante, já alocados na realidade de extermínio em que está posto o negro brasileiro da periferia. Pelo jeito, só o Governo Federal tem investido mais seriamente em Educação nos últimos dez anos. Porém, seu investimento não passa de financiamento, pois a Constituição estabelece os estados e municípios como responsáveis pela educação básica. Enquanto a assistência social não for efetiva, enquanto o Ministério Público fingirem que não são invocados, enquanto tivermos tantos filhos da elite em nosso legislativo, em nosso executivo, enquanto os movimentos sociais não forem fortalecidos, continuaremos vivendo esse estágio de sitio em nossa periferia. E nem adianta clamar por mais investimento no contingente de policiais: quanto mais homens contratados nas condições de trabalho em que eles estão, nada vai adiantar.